As experiencias de performance conjunta

As experiências de performance conjunta
humano-máquina de Thomas Edison1

Nicolau Centola

2

A proposta deste trabalho é mostrar como Thomas Edison desenvolveu os tone tests,
promovidos entre 1915 e 1925 como ferramenta de divulgação. O intuito da iniciativa foi integrar
instrumentistas, cantores e fonógrafos, além de elementos de cenografia e iluminação, em
apresentações em teatros nos EUA, como forma de demonstrar as possibilidades da nova
tecnologia de registro em disco e a qualidade das gravações, que Edison chamava “recriações”.
Este projeto pode ser considerado uma das primeiras experiências de performance unindo
humanos e artefatos sonoros.
The purpose of this article is show how Thomas Edison developed the tone tests, promoted
between 1915 and 1925. The purpose of the initiative was integrate musicians, singers and
phonograph, including elements of scenography and lighting, in presentations at theaters in the
U.S.A. as a way of demonstrating the possibilities of new recording technology and the quality of
the recordings, which Edison called "re -creations". This project can be considered one of the
first experiences of human and machine performance.
Palavras-chave: música, performance, estética, cibercultura


1

Artigo apresentado no III Congresso Internacional em Artes, Novas Tecnologias e Comunicação (CIANTEC),
Aveiro, Portugal, 2009 e no #8.ART - Encontro Internacional de Arte e Tecnologia, Brasília, 2009.
2
Nicolau Centola é engenheiro eletrônico graduado pela UNICAMP e é mestre em Educação, Arte e História da
Cultura na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Trabalha como jornalista na área de tecnologia e web e
atualmente é professor universitário nos cursos de graduação em Design Digital e em Jornalismo do Centro
Universitário FIEO (Osasco - SP).
www.caycepollard.com.br - centola.nicolau@gmail.com.

“Enquanto a platéia tomava seus assentos, vi um fonógrafo de mogno sozinho no palco. Um homem de luvas
brancas surgiu por detrás das cortinas. Ele colocou um disco sobre o prato do toca-discos e silenciosamente
desapareceu. A sala de concerto foi preenchida com a ária "Vissi d'Arte" da ópera Tosca, de Puccini. Uma segunda
voz, idêntica à primeira, juntou-se à música, e Marie Rappold, do Metropolitan Opera de Nova York, caminhou para o
palco, cantando junto com a sua voz gravada. Ocasionalmente, ela descansou e permitiu que o disco continuasse
sozinho, e em outros momentos o fonógrafo fez a mesma cortesia com ela.”

3


Um amante da música no início do século XXI que se deparasse com esta nota, publicada no
jornal New York Tribune, poderia se interessar pela experiência, imaginando tratar-se de um
novo projeto musical que pretendesse unir ópera e música eletrônica, já que havia no palco um
toca-discos que dialogava com uma cantora, uma combinação usual a partir da metade da
década de 1990, quando tornaram-se comuns as performances que traziam instrumentistas e
equipamentos eletrônicos.
Porém esta notícia foi publicada no dia 29 de abril de 1916, e refere-se à uma apresentação
para 2.500 pessoas no Carnegie Hall em Nova Iorque, promovida por Thomas Edison.
Chamadas Tone Tests, estas apresentações destinavam-se a divulgar um lançamento da
empresa: o fonógrafo Diamond Disc.
Em 1877, Thomas Edison havia inventado a primeira forma de armazenamento sonoro, ao
cantar a tradicional canção “Mary Had a Little Lamb” em um cilindro de cera. Inicialmente
destinado à aplicações corporativas, como por exemplo registros de cartas faladas ou
comunicados à empresa, o aparato não tinha como proposta principal a fidelidade à fonte
emissora, mas sim à compreensão. Ou seja, mais que identificar quem estava falando, Edison
concentrou-se em oferecer um produto no qual se reconheciam as palavras e, portanto, a
mensagem. É bom lembrar que, à época, não havia padrões de comparação de fidelidade, pois
não havia ainda aparelhos que registrassem o som, ao contrário da imagem, já registrada por
fotos ou pelo nascente cinema.

Somente em 1896, o fonógrafo sai do ambiente corporativo e é vendido ao público em geral.
Em poucos anos, torna-se não só um objeto comum na vida doméstica da classe média norteamericana, mas também uma representação da modernidade, pela mudança da cultura
musical.
Até o início do século XX, a presença musical na sociedade estava dividida em duas esferas,
ambas dedicadas à performance ao vivo: a pública, nas salas de concerto, com apresentações
3

THOMPSON, Emily. Machines, music and the quest for fidelity: marketing the Edison phonograph in America, 1877-1925, in The
Musical Quarterly, 1995, Vol. 79, Nº 1, p. 131.

de artistas profissionais e a privada, na qual um membro da família ou amigo tocava em casa
para apreciação doméstica. Normalmente destinada ao sexo feminino, a execução musical
doméstica não tinha, em geral, aspirações de virtuosismo, mas sim de entretenimento.
Com a entrada em cena do fonógrafo, o panorama musical doméstico muda radicalmente. A
performance dá lugar à reprodução mecânica. Ou como ressalta Biocca4, “o fonógrafo
participou do processo de mudança musical, preparando o público, músicos e compositores
para novas formas de experiências auditivas, mediante a deslocação da relação sensorial
cognitiva em favor de uma maior atenção para a audição, e também por divulgar as novas
experiências de som”.
O fonógrafo deixa de ser o aparelho de reprodução sonora e passa a ser o próprio instrumento

musical. Desenvolve-se então o conceito de fidelidade sonora. Se o fonógrafo deseja se tornar
a própria ilusão da presença real, deve ser capaz de reproduzir com fidelidade suficiente o
registro sonoro para tornar a música reconhecível por qualquer ouvinte.
Na primeira década do século XX, Edison havia perdido terreno neste novo mercado por
manter-se fiel ao formato do cilindro de cera. Outras empresas, como Victor e Columbia
lançaram os gramofones com discos de vinil, reconhecidamente mais fáceis de produzir e
armazenar.
Para recuperar sua posição, Edison gasta anos e alguns milhões de dólares para lançar, em
1912, uma máquina que superasse qualquer outro formato e tivesse diversas novidades
tecnológicas, como agulhas de diamante, um novo material para os discos e a forma do registro
no vinil, que tornavam o fonógrafo de Edison incompatível com outras marcas.
De início, Edison orientou seu staff que o Diamond Disc não fosse chamado de máquina, mas
sim de instrumento musical. Para ele, o produto não deveria ter um timbre próprio, como a
concorrência, em geral metalizado, mas sim deveria se tornar inaudível. “O som deve surgir de
forma clara da máquina. O cantor ou músico deve estar na sala, e não na caixa” 5.
Outra providência para transformar o Diamond Disc de máquina em instrumento foi torná-lo
invisível. Se antes os fonógrafos tinham expostos seu mecanismo e corneta, como forma de
revelar a tecnologia de reprodução sonora, Edison agora esconde a maquinaria em gabinetes
de madeiras nobres, que muito facilmente tornam-se parte da mobília. O mais importante é a


4

BIOCCA, Frank A. The pursuit of sound: radio, perception and utopian in the early twentieth century, in Media, Culture and Society,
1988, Vol. 10, Nº 1, p. 67.
5
THOMPSON, op. cit., p. 144.

qualidade sonora, e não como ela é reproduzida. O Diamond Disc se transforma então no
veículo perfeito para as “recriações”, o nome que Edison dá às gravações sonoras.
Como ferramenta de marketing, Edison não estava preocupado em comparar seu novo produto
com a concorrência, mas sim com a “música real”. Surgem então em 1915 os Tone Tests, nos
quais coloca-se em um mesmo palco, para convidados, um fonógrafo e uma cantora lírica, ou
então um pequeno conjunto (Figura 1). A finalidade é comparar a voz original da cantora ou o
timbre dos instrumentos com suas respectivas gravações em disco.
Em pouco menos de dez anos foram apresentados mais de quatro mil Tone Tests em todos os
Estados Unidos para um público estimado de dois milhões de pessoas. As cidades de Liverpool
(Inglaterra), Melbourne (Austrália) e Cidade do México também tiveram suas apresentações.6
Contando com diferentes grupos de artistas para poder cobrir todo o território dos EUA, com
ênfase aos mais famosos para as maiores cidades, os Tone Tests de Edison seguiam
basicamente o mesmo script, como exemplifica o programa de uma das primeiras

apresentações, no Symphony Hall de Boston, em 18 de novembro de 1915 (Figura 2). A
contralto Christine Miller, o violinista Arthur Walsh e o flautista Harold Lyman revezaram-se ao
palco para tocarem juntos com suas próprias gravações (no caso de Christine) ou de outros
artistas, de forma que o público não notasse a diferença sonora.
Os cuidados sonoros para que a apresentação acontecesse sem imprevistos incluíam um
segundo fonógrafo, caso o principal desse algum problema. Ambos deveriam ser testados com
pelo menos quatro horas de antecedência, para evitar problemas.
Além disso, havia todo um aparato cênico para criar uma ambiência que identificasse o público
com o acontecimento. O palco era montado à semelhança de uma sala de música de uma casa
de classe média alta. Tapetes, abajures, poltronas, quadros, móveis, plantas e até um piano
faziam parte das sugestões para reproduzir da melhor maneira possível o ambiente doméstico
(Figura 3).
Outro fator importante para o sucesso dos Tone Tests foi a iluminação. Havia todo um jogo de
luzes para que a teatralização feita no claro e escuro tornasse difícil para a platéia a
identificação de quem estava cantando: a diva ou o fonógrafo. O ponto alto acontecia no final
do espetáculo, quando, no meio de um dueto, todas as luzes se apagavam e ao se acenderem
novamente, somente o fonógrafo estava no palco. Ou como escreveu o repórter do Pittsburgh
Post na apresentação do dia 30 de setembro de 1919:
6


HOFFMAN, Frank e FERSTLER, Howard. Encyclopedia of Recorded Sound. Nova Iorque, Routledge, 2004, p. 1115-1116.

Não parecia difícil determinar, no escuro, quando a cantora cantou ou não. O próprio repórter tinha certeza
disso até que as luzes foram acesas novamente e ele descobriu que Mme. Rappold não estava no palco e
que o novo Edison sozinho estava sendo ouvido.

7

Não é intenção entrar na discussão da validade da comparação sonora entre um fonógrafo e a
voz humana, que parecem incompatíveis para ouvidos treinados quase um século depois, com
desenvolvimentos como o estéreo ou formatos digitais de alta qualidade, entre outros.
Provavelmente o ouvido do apreciador musical no início do século XX não tinha parâmetros
prévios da qualidade da música gravada em aparatos mecânicos, e por isso se assombrasse
com a possível semelhança sonora.
Também não cabe aqui a análise dos Tone Tests como ferramenta mercadológica. O
importante é ressaltar, neste artigo, o caráter inovador e transgressor de Edison ao criar um
novo paradigma de apresentação ao vivo, composta por cantores, instrumentistas e aparelhos
armazenadores de som.
Como ressalta Wurtzler8, a presença de material pré-gravado e execuções em tempo real,
como geralmente ocorre hoje em apresentações ao vivo, vem alterar as noções da performance

sonora

para

novos

limites,

nos

quais

a

relação

presença/ausência

e


temporaneidade/atemporaneidade ganham novas matizes e possibilidades, que ainda estão em
discussão mesmo neste novo século. Neste sentido, a partir da aceitação do registro sonoro
como musica real e a inclusão destes artefatos como componentes de uma apresentação ao
vivo, os Tone Tests indicaram um caminho hoje seguido pela música popular em geral e pela
música eletrônica em particular.
Da mesma forma, ao incluir uma cenografia elaborada e um jogo de iluminação para ressaltar
determinadas e desejadas passagens sonoras ao que antes era somente uma execução
musical, os Tone Tests de Edison foram também formadores de uma estética do prazer visual e
abstrato. O componente visual saiu do universo da ópera, do teatro e do balé, onde já havia a
relação sonora/visual e entrou definitivamente no campo da performance musical.
Para finalizar, por tornar o fonógrafo um instrumento musical, além de apenas um registro
sonoro e por alterar os paradigmas da música doméstica e das apresentações musicais, os
Tone Tests acabaram transformando para sempre este tipo de espetáculo, indicando novas
formas e padrões de execução, performance e recepção.

7

THOMPSON, op. cit., p. 152.
WURTZLER, Steve. She Sang Live, But the Microphone Was Turned Off: The Live, The Recorded and The Subject of
Representation. In ALTMAN, R. (Ed.). Sound Theory, Sound Practice. New York, London, Routledge, 1992, p. 92-94.

8

Bibliografia:
BALDWIN, Neil. Edison: Inventing the Century. Chicago, University Of Chicago Press, 2001.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In ______. Obras
Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.
BIOCCA, Frank A. The pursuit of sound: radio, perception and utopian in the early twentieth
century, in Media, Culture and Society, 1988, Vol. 10, Nº 1, 61-79.
CASCONE, Kim. Laptop Music – Counterfeiting Aura in the Age of Infinite Reproduction, in
Parachute, 2002, Nº 107, 52-60.
DeGRAAF, Leonard. Confronting the Mass Market: Thomas Edison and the Entertainment
Phonograph. Disponível em: Acesso em:
7.jul.2009.
GOHN, Daniel. Aspectos Tecnológicos da Experiência Musical, in Música Hodie, 2007, Vol. 7,
No 2, 11-27. Disponível em:
Acesso em: 7.jul.2009.
HARVITH, John e HARVITH, Susan Edwards. Edison, Musicians, and the Phonograph : A
Century in Retrospect (Contributions to the Study of Music and Dance). Santa Barbara, EUA,
Greenwood Press, 1987.
HOFFMAN, Frank e FERSTLER, Howard. Encyclopedia of Recorded Sound. Nova Iorque,

Routledge, 2004.
HOFFMAN, Frank, COOPER, B Lee e GRACYK, Tim. Popular American Recording Pioneers:
1895-1925. Nova Iorque, Routledge, 2000.
MOWITT, John. The Sound of Music in the Era of its Electronic Reproduction. In LEPPERT,
Richard e McCLARY, Susan (Orgs.). Music and Society: The Politics of Composition,
Performance and Reception. Cambridge, USA, Cambridge University Press, 1989.
STERNE, Jonathan. The Audible Past: Cultural Origins of Sound Reproduction. Durnham, EUA,
Duke University Press, 2003.
THOMPSON, Emily. Machines, music and the quest for fidelity: marketing the Edison
phonograph in America, 1877-1925, in The Musical Quarterly, 1995, Vol. 79, Nº 1, 131-171.
THOMPSON, Emily. The Soundscape of Modernity: Architectural Acoustics and the Culture of
Listening in America, 1900-1933. Cambridge, Massachusetts, MIT Press, 2004.
WURTZLER, Steve. She Sang Live, But the Microphone Was Turned Off: The Live, The
Recorded and The Subject of Representation. In ALTMAN, R. (Ed.). Sound Theory, Sound
Practice. New York, London, Routledge, 1992.