Norma 001

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de Janeiro

Working Paper nº 013

Agosto, 2006

Norma

Prof. Adrian Sgarbi Departamento de Direito

Publicado no Dicionário de Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2006

http: www.jur.puc-rio.br ww.adriansgarbi.com


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Norma

Adrian Sgarbi

Doutor em Direito pela USP. Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito da FDPUC-Rio

Sumário: 1. Generalidades. - 2. Atos normativos, disposições e normas. - 3. Normas de conduta, normas de estrutura e sanções. - 4. Composição formal das normas jurídicas. 5. - Normas e proposições jurídicas. - 6. Algumas predicações normativas.

1. Generalidades

A linguagem prescritiva faz parte dos usos lingüísticos cotidianos. Quando dizemos para uma criança «Não coloque o dedo na tomada», ou mesmo quando pontuamos «Faça o seu dever de casa», «Não pronuncie o nome de Deus em vão» etc., o que estamos inserindo em nosso campo de comunicação são prescrições. As prescrições funcionam, assim, como pautas para o comportamento dos indivíduos, pois são afirmações acerca do que deve ser feito nos diversos casos e situações da vida (Bobbio, 1993). É certo, contudo, que das muitas prescrições pensáveis (morais, de trato social, costumeiras etc.), destacam-se as prescrições jurídicas porque, independentemente do que pense ou esteja a desejar o destinatário, quando emitidas, atuam não apenas como um redutor de opções em suas variadas possibilidades de agir, mas também como um redutor garantido institucionalmente pelo aparado burocrático estatal que detém o monopólio do uso da força (CP, art. 345). Tal significa que além da seleção de ações possíveis que origina, sobressai do conjunto normativo jurídico a presença do aparato estatal e de suas técnicas de dissuasão. Daí poder dizer-se, em acepção elementar, que “norma jurídica” corresponde a um enunciado prescritivo que estabelece uma conseqüência (jurídica) quando da aparição de certas circunstâncias («Se se verifica a situação típica “p”, então segue a conseqüência jurídica “S”»).


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2. Atos normativos, disposições e normas

A palavra norma, e, propriamente, a expressão “norma jurídica”, apesar de sua ampla difusão, não desfruta, seja na linguagem doutrinária, judicial ou mesmo na linguagem do legislador, de univocidade designativa. Se por vezes há o entendimento que uma norma corresponde a uma regra de comportamento que determina o que se deve e o que não deve ser feito, outras vezes é utilizada como sinônimo de certo texto ou documento legislativo, ou mesmo de parte desse texto ou documento legislativo. Tal é perceptível nas seguintes frases: «Os cidadãos têm o direito de se reunirem para fins pacíficos»; «A Constituição da República é uma norma»; «O legislador produz normas»; «Leia a norma X do Código civil». O problema desse uso despreocupado, ou mesmo ingênuo, é que ele corresponde a indisfarçável baralhamento de idéias; baralhamento que, desgraçadamente, é muito difundido e que consiste na identificação dos enunciados legislativos com os significados desses enunciados, o que tem reforçado a impropriedade de construções frasais como estas: «O juiz interpretou a norma», «Você não aplicou adequadamente o artigo Y», e assim sucessivamente. Por outras palavras, o que ocorre é uma confusão entre os suportes materiais, os signos gráficos de uma língua natural, com o que tais signos exprimem ou significam.

Um enunciado é uma expressão lingüística, oral ou escrita, com forma gramatical completa (Guastini, 1992). A completude do enunciado encontra-se determinada pela gramática da língua em questão. Daí que quando se diz «O rato roeu a roupa do rei de Roma», está-se diante de um enunciado completo, mas quando nos deparamos com «..rato roeu...» e «..rei de...», não estamos mais diante de um enunciado, mas de locuções ou sintagmas. Locuções ou sintagmas são grupos de unidades lingüísticas (palavras) que, unidas, formam uma unidade significativa. Por exemplo: se olho é verbo, “passo a olhar”, “continuo olhando”, “volto a olhar” são locuções verbais. Se um enunciado é parte de um texto normativo, o enunciado recebe o nome de dispositivo ou preceito legal (ou ainda, mais especificamente, quando em uma constituição, de dispositivo constitucional). Um dispositivo ou disposição é assim um enunciado do discurso legislativo (o que se costuma chamar de legislação). Todavia, um dispositivo, seja ele constitucional


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ou infraconstitucional, não pode ser compreendido como sinônimo de norma. E isso porque não é nada além de enunciados contidos nos textos normativos ao passo que as normas elas são o sentido desse texto ou textos, o resultado, enfim, do seu processo interpretativo. Por isso que um texto normativo pode conter muitas normas, nenhuma norma, ou uma única norma. Essa desassociação (falta de correspondência biunívoca) é explicável como resultante de causas muito diversas, ainda que seja recorrente citar-se o problema nomográfico da má formulação do texto como a principal delas. Quanto a isso, podem-se tanto mencionar as formulações incompreensíveis, como, também, as formulações ambíguas e as formulações textuais redundantes. Há formulações incompreensíveis quando os problemas gramaticais são de tamanha magnitude que o texto nada significa; ambigüidade quando um único texto apresenta mais de um sentido (como uma norma é o sentido de um texto, um mesmo texto expressa, aqui, mais de uma norma); e redundância quando dois ou mais textos estão a expressar uma mesma norma (há, pois, caráter significativo sinônimo nas construções frasais). Mas não apenas por problemas de construção que se tem comprovado a desassociação entre texto e norma (disposições sem norma (fig. 1), disposições ambíguas (fig.2), e disposições redundantes (fig. 3)); é possível que os intérpretes dos textos combinem as disposições formulando normas que as disposições isoladas não têm como fornecer (fig. 4). Pensável é, também, a situação em que muitos textos não expressem norma alguma por falta de outro texto normativo que complete seu significado (fig. 5), pois não havendo significado não há norma. Além disso, podem ser acrescentadas as hipóteses em que há normas sem disposição normativa direta (fig. 6), tais como: os costumes jurídicos, os princípios implícitos, e os resultados do emprego das técnicas de integração (a simili ou analógico, a contrario, etc.) levadas a efeito pelo aplicador quando colmata lacunas (Guastini, 1992).


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Com respeito à especificidade dos textos normativos, estes são decorrências de atos normativos. Deve-se distinguir, por conseguinte, a atividade de produção normativa das atividades interpretativas: uma consiste na criação dos textos normativos; a outra na enucleação destes textos em normas. Os atos normativos, assim, relacionados com a produção de textos, são os atos voluntários regulados n o r m a t i v a m e n t e c o m v i s t a s à e l a b o r a ç ã o d e m a t e r i a i s j u r í d i c o s . Paradigmaticamente, ditos atos normativos encontram sede no processo legislativo (CF, art. 59 até 69). Desse modo, os atos normativos não podem ser reduzidos ou identificados com seu resultado: atos normativos e textos normativos são lógica e temporalmente distintos, pois há relação de precedência dos primeiros em relação aos últimos. Atos normativos de produção normativa são atos de criação de textos, são emissões de enunciados, não de normas. Por isso que a atividade interpretativa, de modo elementar, consiste em realizar o procedimento intelectual de atribuir ou adscrever significado a um ou mais enunciados (normativos); e a norma, o seu resultado. Sendo assim, enquanto os textos normativos (materiais jurídicos escritos) são “produtos do legislador”, as normas são “adscrições dos intérpretes” e, em particular, dos juízes. Daí que não se interpreta normas, mas se as aplica, demais de que não se aplicam os textos, mas se os interpreta. Conclui-se assim que, da parte dos intérpretes, os textos normativos encontram-se intocáveis sintaticamente já que a modificação textual apenas pode ser processada pelos agentes competentes para a produção normativa.


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3. Normas de conduta, normas de estrutura e sanções

A idéia de que há certos agentes produtores de textos normativos parece evidenciar que além das normas ditas de “conduta” deve haver normas que habilitam ou que deferem esse poder de elaborar normas jurídicas a certas pessoas. Portanto, caso sejam consideradas as referências normativas que específica ordem jurídica pode apresentar, afigura-se claro que nem todas cumprem a função de servirem de pautas para as condutas humanas. De tão importante é esta percepção que, de uma anterior compreensão da juridicidade centrada em critérios essencialistas (ser a norma sancionadora negativa, por exemplo, como fez KELSEN), atualmente grande espaço é reservado para as

análises dos critérios de existência-pertencimento (que a norma N tenha sido produzida pela autoridade normativa AN da ordem jurídica OJ no tempo t para o âmbito espacial q).

Grosso modo, as normas de uma ordem jurídica ou bem são normas de conduta (ou primárias), ou bem são normas de estrutura (ou secundárias). As “normas de conduta” correspondem aos comandos de comportamento, i.e., aos preceitos que geram obrigações, proibições e autorizações ou permissões. São normas, por assim dizer, que instituem o “obrigatório” (Op), o “proibido” (Php), e o “permitido” (Pp). Estar “obrigado”, ser “proibido”, e ter a “permissão” são determinações para as condutas humanas (ou, como também se usa dizer: são modais deônticos). Essas determinações cumprem a função, não apenas de formarem marcos com vistas a obter comportamentos conformes, mas também são padrões avaliativos concretos para os atos disformes. Já as normas de estrutura formam um grupo muito variado de normas, tais como as normas de racionalização da produção (normas de produção jurídica), interpretação (dos textos normativos), de aplicação (das normas), de revogação (de textos normativos e de normas), etc.

Às normas de conduta comumente são agregadas sanções jurídicas. Para a cultura jurídica tradicional, “sanção” é o ato de força pelo qual o Estado, fazendo uso de seu monopólio da violência regulada, castiga os sujeitos que tenham realizado uma conduta prevista como ilícita por uma norma jurídica. Contudo, duas


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oposições, ao menos, podem ser feitas a essa forma de concebê-la: uma, ontológica; outra, metodológica. A primeira oposição oposição ontológica assenta-se no valor atribuído à sanção. Segundo essa corrente doutrinária, a sanção não é essencial às normas jurídicas porque nem todas as normas que comumente são consideradas jurídicas pelos teóricos do direito são normas dotadas de sanção. Com efeito, afirmam os autores que assumem essa postura que o modelo sancionador além de rígido é inconsistente. Pense-se nas definições legislativas, nas normas de competência, nas normas que estabelecem procedimentos, todas elas afrontam o modelo canônico das normas sancionadoras, e chamá-las de normas não-autênticas, de fragmentos de normas, ou mesmo de normas não-autônomas, pouco esclarece o papel que desempenham nas ordens jurídicas. A segunda oposição oposição metodológica tem por base outra estratégia; porque embora os teóricos que assumem essa corrente não neguem de modo definitivo o critério da sanção, ponderam que a técnica da sanção como punição não é a única técnica utilizada funcionalmente pelo direito para reforçar o cumprimento das normas de conduta, i.e., nem todas as sanções presentes nos ordenamentos jurídicos são sanções negativas. Porque dizer que as sanções correspondem a certa técnica que as ordens normativas dispõem para reforçar a observância e prevenir a inobservância de suas próprias normas, não é o mesmo que dizer que esse reforço deve ser necessariamente uma resposta negativa ou que implique em um prejuízo ao praticante da falta ou seu responsável, pois com freqüência as ordens jurídicas contemporâneas fazem uso das sanções positivas ou promocionais (Bobbio, 1977). Com isso, se é comum se pensar em um mal que se põe como resposta a uma proibição que é violada, pode-se bem utilizar, noutro sentido, a técnica de beneficiar àquele que age conforme ao preceituado, e esta é a essência das sanções positivas. Tudo com vistas a manter a utilização concreta da ordem jurídica com o fim de se evitar que ela mesma desapareça por falta de repercussão fática. Nesses termos, considerando o critério do pertencimento-existência, todo material jurídico produzido por um agente competente, possua ou não sanção (de qualquer tipo), é material que existe na ordem jurídica.


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4. Composição formal das normas jurídicas

É comum a afirmação de que as normas jurídicas são estruturas sintáticas de composição condicional, o que significa que as normas são dotadas de um antecedente e de um conseqüente. O antecedente ou termo condicionante, que também é conhecido como prótase, é o enunciado que estabelece o condicional “Se...”; o conseqüente ou termo condicionado, que também é chamado de apódose, estabelece a implicação, no que sua configuração habitual consiste no “...então...”. Assim a fórmula “Se A, então B”, corresponde ao fato e a conseqüência imputada ao fato, a sanção. Por conseguinte, os sintagmas «”se”, “então” ou a cópula lógica “e” ou “são”» correspondem ao dizer normativo referencial de uma realidade dada e a conseqüência estatuída.

5. Normas e proposições normativas

É usual distinguir-se o direito (no sentido de direito ´objetivo´) das formulações que se elabora acerca dele. Diz-se, assim, que o direito corresponde a um conjunto de normas (prescrições) e que a ciência jurídica (as formulações dos juristas) é composta por proposições normativas (descrições). A distinção tem por base a situação de que os (item a) juristas quando lêem os materiais normativos os descrevem ao passo que os legisladores, como os juízes, prescrevem. Uma e outra camada discursiva não pode ser confundida, isso porque a característica que as diferencia remete ao caráter funcional de conhecimento dos juristas e a função essencialmente regulativa das normas (Alchourrón-Bulygin, 1975). Nesse sentido, os dizeres «A norma N de OJ que proíbe matar é válida» não está no mesmo patamar lingüístico que «Matar alguém. Pena de 6 a 20 anos», pois exercem funções lingüísticas distintas; esta é linguagem-objeto; aquela é uma metalinguagem. Aliás, (item b) porque os enunciados descritivos não obrigam, não proíbem, não permitem e não facultam nada, eles podem ser verdadeiros ou falsos; já as normas jurídicas obrigam, proíbem, permitem; daí não haver como predicá-las de verdadeiras ou falsas, apenas válidas ou inválidas, justas ou injustas, úteis ou inúteis. Entre normas e proposições não há, com isso, relação necessária de implicação constitutiva. Essa


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impossibilidade é conhecida como “Lei de Hume”: daquilo que é não se pode deduzir um dever ser, ou seja, se digo «Os homens mentem» disso não se pode deduzir que os homens devem ou não devem mentir. As distinções relevantes entre normas e proposições são, com isso, de duas ordens: uma psíquica (a); outra de propriedade (b).

6. Algumas predicações normativas

Validade e invalidade, justiça e injustiça, eficácia e ineficácia, são algumas das predicações mais importantes quando o tema recortado envolve a normatividade jurídica. E a razão para isso é simples: enquanto a validade remete à idéia do direito como norma (o que constitui e o que constitui norma adequadamente produzida em um dado conjunto de normas), a eficácia corresponde à análise do direito como fato, e, a justiça, o direito como valor.

No campo jurídico o termo validade é utilizado em vários sentidos. Em um de seus sentidos (o único que está a nos interessar aqui), entende-se que validade consubstancia a idéia de uma relação normativa. Essa relação normativa é uma relação de adequação. E é uma relação de adequação porque predica a inclusão correta ou incorreta de normas a certo conjunto normativo, o conjunto normativo, p.ex., CJ. Esses critérios podem ser tanto formais quanto materiais. Sendo assim, tendo conhecimento de que critérios são esses, pode o operador do conjunto normativo afirmar que «N é uma norma válida em CJ» dada a explicitação do critério relacional R presente no próprio conjunto normativo. Esses critérios têm sido designados de critérios (1) de legalidade; e (2) de inferência (Caracciolo, 1988).

Segundo (1) o critério de legalidade, uma norma N é válida no conjunto normativo CJ se: (1.1.) Respeita as normas de estrutura, tais como: (a) normas que atribuem a certos órgãos o poder de criar certa espécie normativa (competência); (b) normas constitutivas das espécies admitidas segundo sua função (Lei complementar, lei ordinária, medida provisória, etc.); (c) normas de procedimento específicas para a espécie normativa cogitada (quorum, prazos, etc.); (d) normas de contenção para a espécie normativa (matérias inalcançáveis


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para a espécie); (e) normas que determinam quais devem ser os conteúdos da legislação, seja determinando proibições, seja impondo um conteúdo determinado (cláusulas pétreas, normas programáticas, etc.); e (1.2.) Não tenha sido (a) revogada seja expressa seja tacitamente por uma norma válida de mesma hierarquia ou por incompatibilidade com norma hierarquicamente superior; e (b) não tenha sido anulada por um ato normativo que, por sua vez, também deve ser válido como ato jurídico.

Conforme o (2) critério de dedução ou inferência, uma norma N é válida no conjunto normativo CJ se é uma conseqüência lógica das normas válidas em CJ. Atendido esse critério elementar, as normas jurídicas válidas se propagam.

Mas como se entende, dogmaticamente, que basta ser concluído o processo de produção normativa para que a espécie normativa passe a existir, iniciando, por conseguinte, a presunção de sua validade, deve-se pontuar que é plenamente possível que uma norma inválida (uma norma que não atende plenamente os critérios de validade formal e material) esteja sendo aplicada aos casos concretos, razão pela qual se conclui que pensar no conjunto normativo como um conjunto que é composto tão-somente por normas válidas dista muito da realidade jurídica. Isso porque a existência de uma norma precede à sua validade (Pontes de Miranda, 1970); e, para existir, basta à norma ser publicada.

Observe-se que, se os critérios de validade são critérios de fundamentação (normativa), evidentemente que a norma que assenta esses critérios não pode ser assim predicada (não pode ser válida ou inválida), mas observada ou não observada. Por isso que para responder quando uma constituição é uma constituição da comunidade C, basta responder que ela o é quando observada e aplicada pelos órgãos constitucionais e, no todo, pela própria comunidade C: sua existência é um problema empírico-político de estabilidade; estabilidade esta que está relacionada, de modo elementar, com a manutenção da identidade do exercício do poder que a caracteriza (Valdés, 1987).

Por outro lado, a predicação de validade é por vezes acentuada com a idéia de obediência e, por extensão, de justiça, i.e., um critério que transcende a própria normatividade para remeter a certos valores tidos como superiores, externos, e,


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não raro, projetados como universais. Quando se fala em justiça, assim, está-se a mencionar um plano diferente do jurídico positivo; deixa-se este para ingressar no canal do modelo de moralidade ou dos juízos morais. Aliás, o positivismo jurídico nega essa possibilidade externa de condicionamento e sustenta razões internas de validade. Duas teses são dignas de destaque: a tese do formalismo jurídico; e a do formalismo ético (Bobbio, 1991). Para o formalismo jurídico justiça e validade são dois conceitos independentes, pois a validade de uma norma nada diz sobre sua justiça (e, portanto, com sua obrigatoriedade moral); para o formalismo ético a validade de uma norma é condição suficiente de justiça, daí a derivação da obrigação de obediência (moral da norma positiva). Observe-se que quando se assume a tese do formalismo jurídico as instâncias aplicabilidade (que é uma questão técnico-jurídica) e aplicação (que é uma questão ética além de jurídica – que pode, inclusive, ensejar resistência do operador) deixam de ser necessariamente co-extensivas.

Por sua vez, o termo eficácia, como na frase «A norma N é eficaz», tem, entre os juristas, oscilado, ao menos, entre duas acepções: uma, por assim dizer, propriamente jurídica; outra, por assim dizer, propriamente sociológica ou sociológico-jurídica (Navarro, 1990). Com a idéia de eficácia propriamente jurídica a informação que se intenta transmitir com a acentuação da eficácia de N é que N possui as condições de produzir efeitos jurídicos. Três são as designações mais comuns: eficácia como gradação de suas repercussões em razão de sua regulamentação ou não; eficácia como aplicabilidade; e eficácia como força normativa. No primeiro caso, diz-se ser a eficácia graduada desde sua plena eficácia até sua eventual contenção, sempre a relacionando com a idéia de sua auto-suficiência ou não diante de outra norma; no segundo caso, diz-se ser eficaz a norma que pode ser aplicada e ineficaz a que não pode ser aplicada (por exemplo: quando impedida de surtir efeitos por reconhecimento de sua ilegitimidade constitucional por órgão competente para tanto); no terceiro caso, eficácia está sendo relacionada com a peculiar força que uma norma possui caso se leve em consideração sua posição hierárquica (por exemplo: afirma-se que


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uma norma de hierarquia superior tem maior força jurídica que a inferior, com o que não a afeta).

Conforme a acepção de eficácia como propriedade sociológico-jurídica, esta designa não mais a capacidade de produzir efeitos jurídicos, mas a peculiar condição de N estar motivando os destinatários. Daí que neste segundo uso de eficácia ou bem pode estar designando o cumprimento de N (pelos seus destinatários gerais) como a aplicação de N (pelos juizes, por exemplo, depois que

N é descumprida). No primeiro caso a repercussão social remete à idéia de realização voluntária da norma N; no segundo caso, de sua realização forçada com o Estado importo seu aparato institucionalizado ou, como se usa também dizer, seu monopólio da força física. Interessa observar que tem aparecido na literatura especializada o termo ´efetividade´ para indicar o que aqui se está chamando de eficácia sociológico-jurídica; isso, nas suas duas configurações destacadas. É freqüente também designar a eficácia jurídica de eficácia interna (porque atinente a normatividade propriamente dita) e a efetividade de eficácia externa (porque atinente às reverberações fáticas da norma, como ela repercute entre seus destinatários sejam eles gerais, sejam eles membros da burocracia estatal).

Observe-se, por último, que são independentes as adjetivações de validade, justiça e eficácia. Por isso é possível encontrar normas: (1) válidas, ineficazes e injustas; (2) válidas, ineficazes e justas; (3) válidas, eficazes e injustas; (4) válidas, eficazes e justas; (5) inválidas, ineficazes e injustas; (6) inválidas, ineficazes e justas; (7) inválidas, eficazes e injustas; e (8) inválidas, eficazes e justas. Todavia, ainda aqui há a necessidade de se atentar para uma distinção: no plano interno de certo conjunto normativo, e para o positivismo tradicional, os itens 5, 6, 7 e 8 não retratam normas corretamente elaboradas; ao passo que para o jusnaturalismo os itens 1, 3, 5 e 7 não configuram normas que devam ser observadas. Já sob a análise externa do conjunto normativo, os itens 3, 4, 7 e 8 são cruciais, pois, em que pese o fato de não ser o caso de se avaliar sua validade ou invalidade de uma constituição (pois dita predicação não lhe cabe) pode-se distingui-la em eficiente ou ineficiente (sua aptidão de se realizar ou não, atendendo ao que objetiva: ser


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marco de referência, em termos básicos, para toda e qualquer produção normativa) e justa ou injusta (ou, se assim se quiser assimilar, noutra instância, legítima ou ilegítima, uma questão de estar justificada aos olhos dos súditos contra o império da nua imposição).

Bibliografia básica

ALCHOURRÓN, Carlos/BULYGIN, Eugenio. Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y sociales. Buenos Aires: ASTREA, 1975.

BOBBIO, Norberto. Dalla struttura a la funzione (Nuovo studi di teoria del diritto). Milano: Comunità, 1977.

BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo jurídico. México: ITAM, 1991.

BOBBIO, Norberto. Teoria generale del diritto, Torino: G. Giappichelli Editore, 1993.

CARACCIOLO, Ricardo A. El sistema jurídico. Problemas actuales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988.

GUASTINI, Riccardo. Dalle fonti alle norme. Torino: G. Giappichelli Editore, 1992. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

NAVARRO, Pablo Eugenio. La eficacia del derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1990.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, vol IV, Rio de Janeiro, Borsoi, 1970.

VALDÉS, Ernesto Garzón. El concepto de estabilidad de los sistemas políticos. México: ITAM, 1987.


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4. Composição formal das normas jurídicas

É comum a afirmação de que as normas jurídicas são estruturas sintáticas de composição condicional, o que significa que as normas são dotadas de um antecedente e de um conseqüente. O antecedente ou termo condicionante, que também é conhecido como prótase, é o enunciado que estabelece o condicional “Se...”; o conseqüente ou termo condicionado, que também é chamado de apódose, estabelece a implicação, no que sua configuração habitual consiste no “...então...”. Assim a fórmula “Se A, então B”, corresponde ao fato e a conseqüência imputada ao fato, a sanção. Por conseguinte, os sintagmas «”se”, “então” ou a cópula lógica “e” ou “são”» correspondem ao dizer normativo referencial de uma realidade dada e a conseqüência estatuída.

5. Normas e proposições normativas

É usual distinguir-se o direito (no sentido de direito ´objetivo´) das formulações que se elabora acerca dele. Diz-se, assim, que o direito corresponde a um conjunto de normas (prescrições) e que a ciência jurídica (as formulações dos juristas) é composta por proposições normativas (descrições). A distinção tem por base a situação de que os (item a) juristas quando lêem os materiais normativos os descrevem ao passo que os legisladores, como os juízes, prescrevem. Uma e outra camada discursiva não pode ser confundida, isso porque a característica que as diferencia remete ao caráter funcional de conhecimento dos juristas e a função essencialmente regulativa das normas (Alchourrón-Bulygin, 1975). Nesse sentido, os dizeres «A norma N de OJ que proíbe matar é válida» não está no mesmo patamar lingüístico que «Matar alguém. Pena de 6 a 20 anos», pois exercem funções lingüísticas distintas; esta é linguagem-objeto; aquela é uma metalinguagem. Aliás, (item b) porque os enunciados descritivos não obrigam, não proíbem, não permitem e não facultam nada, eles podem ser verdadeiros ou falsos; já as normas jurídicas obrigam, proíbem, permitem; daí não haver como predicá-las de verdadeiras ou falsas, apenas válidas ou inválidas, justas ou injustas, úteis ou inúteis. Entre normas e proposições não há, com isso, relação necessária de implicação constitutiva. Essa


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impossibilidade é conhecida como “Lei de Hume”: daquilo que é não se pode deduzir um dever ser, ou seja, se digo «Os homens mentem» disso não se pode deduzir que os homens devem ou não devem mentir. As distinções relevantes entre normas e proposições são, com isso, de duas ordens: uma psíquica (a); outra de propriedade (b).

6. Algumas predicações normativas

Validade e invalidade, justiça e injustiça, eficácia e ineficácia, são algumas das predicações mais importantes quando o tema recortado envolve a normatividade jurídica. E a razão para isso é simples: enquanto a validade remete à idéia do direito como norma (o que constitui e o que constitui norma adequadamente produzida em um dado conjunto de normas), a eficácia corresponde à análise do direito como fato, e, a justiça, o direito como valor.

No campo jurídico o termo validade é utilizado em vários sentidos. Em um de seus sentidos (o único que está a nos interessar aqui), entende-se que validade consubstancia a idéia de uma relação normativa. Essa relação normativa é uma relação de adequação. E é uma relação de adequação porque predica a inclusão correta ou incorreta de normas a certo conjunto normativo, o conjunto normativo, p.ex., CJ. Esses critérios podem ser tanto formais quanto materiais. Sendo assim, tendo conhecimento de que critérios são esses, pode o operador do conjunto normativo afirmar que «N é uma norma válida em CJ» dada a explicitação do critério relacional R presente no próprio conjunto normativo. Esses critérios têm sido designados de critérios (1) de legalidade; e (2) de inferência (Caracciolo, 1988).

Segundo (1) o critério de legalidade, uma norma N é válida no conjunto normativo CJ se: (1.1.) Respeita as normas de estrutura, tais como: (a) normas que atribuem a certos órgãos o poder de criar certa espécie normativa (competência); (b) normas constitutivas das espécies admitidas segundo sua função (Lei complementar, lei ordinária, medida provisória, etc.); (c) normas de procedimento específicas para a espécie normativa cogitada (quorum, prazos, etc.); (d) normas de contenção para a espécie normativa (matérias inalcançáveis


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para a espécie); (e) normas que determinam quais devem ser os conteúdos da legislação, seja determinando proibições, seja impondo um conteúdo determinado (cláusulas pétreas, normas programáticas, etc.); e (1.2.) Não tenha sido (a) revogada seja expressa seja tacitamente por uma norma válida de mesma hierarquia ou por incompatibilidade com norma hierarquicamente superior; e (b) não tenha sido anulada por um ato normativo que, por sua vez, também deve ser válido como ato jurídico.

Conforme o (2) critério de dedução ou inferência, uma norma N é válida no conjunto normativo CJ se é uma conseqüência lógica das normas válidas em CJ. Atendido esse critério elementar, as normas jurídicas válidas se propagam.

Mas como se entende, dogmaticamente, que basta ser concluído o processo de produção normativa para que a espécie normativa passe a existir, iniciando, por conseguinte, a presunção de sua validade, deve-se pontuar que é plenamente possível que uma norma inválida (uma norma que não atende plenamente os critérios de validade formal e material) esteja sendo aplicada aos casos concretos, razão pela qual se conclui que pensar no conjunto normativo como um conjunto que é composto tão-somente por normas válidas dista muito da realidade jurídica. Isso porque a existência de uma norma precede à sua validade (Pontes de Miranda, 1970); e, para existir, basta à norma ser publicada.

Observe-se que, se os critérios de validade são critérios de fundamentação (normativa), evidentemente que a norma que assenta esses critérios não pode ser assim predicada (não pode ser válida ou inválida), mas observada ou não observada. Por isso que para responder quando uma constituição é uma constituição da comunidade C, basta responder que ela o é quando observada e aplicada pelos órgãos constitucionais e, no todo, pela própria comunidade C: sua existência é um problema empírico-político de estabilidade; estabilidade esta que está relacionada, de modo elementar, com a manutenção da identidade do exercício do poder que a caracteriza (Valdés, 1987).

Por outro lado, a predicação de validade é por vezes acentuada com a idéia de obediência e, por extensão, de justiça, i.e., um critério que transcende a própria normatividade para remeter a certos valores tidos como superiores, externos, e,


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não raro, projetados como universais. Quando se fala em justiça, assim, está-se a mencionar um plano diferente do jurídico positivo; deixa-se este para ingressar no canal do modelo de moralidade ou dos juízos morais. Aliás, o positivismo jurídico nega essa possibilidade externa de condicionamento e sustenta razões internas de validade. Duas teses são dignas de destaque: a tese do formalismo jurídico; e a do formalismo ético (Bobbio, 1991). Para o formalismo jurídico justiça e validade são dois conceitos independentes, pois a validade de uma norma nada diz sobre sua justiça (e, portanto, com sua obrigatoriedade moral); para o formalismo ético a validade de uma norma é condição suficiente de justiça, daí a derivação da obrigação de obediência (moral da norma positiva). Observe-se que quando se assume a tese do formalismo jurídico as instâncias aplicabilidade (que é uma questão técnico-jurídica) e aplicação (que é uma questão ética além de jurídica – que pode, inclusive, ensejar resistência do operador) deixam de ser necessariamente co-extensivas.

Por sua vez, o termo eficácia, como na frase «A norma N é eficaz», tem, entre os juristas, oscilado, ao menos, entre duas acepções: uma, por assim dizer, propriamente jurídica; outra, por assim dizer, propriamente sociológica ou sociológico-jurídica (Navarro, 1990). Com a idéia de eficácia propriamente jurídica a informação que se intenta transmitir com a acentuação da eficácia de N é que N possui as condições de produzir efeitos jurídicos. Três são as designações mais comuns: eficácia como gradação de suas repercussões em razão de sua regulamentação ou não; eficácia como aplicabilidade; e eficácia como força normativa. No primeiro caso, diz-se ser a eficácia graduada desde sua plena eficácia até sua eventual contenção, sempre a relacionando com a idéia de sua auto-suficiência ou não diante de outra norma; no segundo caso, diz-se ser eficaz a norma que pode ser aplicada e ineficaz a que não pode ser aplicada (por exemplo: quando impedida de surtir efeitos por reconhecimento de sua ilegitimidade constitucional por órgão competente para tanto); no terceiro caso, eficácia está sendo relacionada com a peculiar força que uma norma possui caso se leve em consideração sua posição hierárquica (por exemplo: afirma-se que


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uma norma de hierarquia superior tem maior força jurídica que a inferior, com o que não a afeta).

Conforme a acepção de eficácia como propriedade sociológico-jurídica, esta designa não mais a capacidade de produzir efeitos jurídicos, mas a peculiar condição de N estar motivando os destinatários. Daí que neste segundo uso de eficácia ou bem pode estar designando o cumprimento de N (pelos seus destinatários gerais) como a aplicação de N (pelos juizes, por exemplo, depois que N é descumprida). No primeiro caso a repercussão social remete à idéia de realização voluntária da norma N; no segundo caso, de sua realização forçada com o Estado importo seu aparato institucionalizado ou, como se usa também dizer, seu monopólio da força física. Interessa observar que tem aparecido na literatura especializada o termo ´efetividade´ para indicar o que aqui se está chamando de eficácia sociológico-jurídica; isso, nas suas duas configurações destacadas. É freqüente também designar a eficácia jurídica de eficácia interna (porque atinente a normatividade propriamente dita) e a efetividade de eficácia externa (porque atinente às reverberações fáticas da norma, como ela repercute entre seus destinatários sejam eles gerais, sejam eles membros da burocracia estatal).

Observe-se, por último, que são independentes as adjetivações de validade, justiça e eficácia. Por isso é possível encontrar normas: (1) válidas, ineficazes e injustas; (2) válidas, ineficazes e justas; (3) válidas, eficazes e injustas; (4) válidas, eficazes e justas; (5) inválidas, ineficazes e injustas; (6) inválidas, ineficazes e justas; (7) inválidas, eficazes e injustas; e (8) inválidas, eficazes e justas. Todavia, ainda aqui há a necessidade de se atentar para uma distinção: no plano interno de certo conjunto normativo, e para o positivismo tradicional, os itens 5, 6, 7 e 8 não retratam normas corretamente elaboradas; ao passo que para o jusnaturalismo os itens 1, 3, 5 e 7 não configuram normas que devam ser observadas. Já sob a análise externa do conjunto normativo, os itens 3, 4, 7 e 8 são cruciais, pois, em que pese o fato de não ser o caso de se avaliar sua validade ou invalidade de uma constituição (pois dita predicação não lhe cabe) pode-se distingui-la em eficiente ou ineficiente (sua aptidão de se realizar ou não, atendendo ao que objetiva: ser


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marco de referência, em termos básicos, para toda e qualquer produção normativa) e justa ou injusta (ou, se assim se quiser assimilar, noutra instância, legítima ou ilegítima, uma questão de estar justificada aos olhos dos súditos contra o império da nua imposição).

Bibliografia básica

ALCHOURRÓN, Carlos/BULYGIN, Eugenio. Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y sociales. Buenos Aires: ASTREA, 1975.

BOBBIO, Norberto. Dalla struttura a la funzione (Nuovo studi di teoria del diritto). Milano: Comunità, 1977.

BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo jurídico. México: ITAM, 1991.

BOBBIO, Norberto. Teoria generale del diritto, Torino: G. Giappichelli Editore, 1993.

CARACCIOLO, Ricardo A. El sistema jurídico. Problemas actuales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988.

GUASTINI, Riccardo. Dalle fonti alle norme. Torino: G. Giappichelli Editore, 1992. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

NAVARRO, Pablo Eugenio. La eficacia del derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1990.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, vol IV, Rio de Janeiro, Borsoi, 1970.

VALDÉS, Ernesto Garzón. El concepto de estabilidad de los sistemas políticos. México: ITAM, 1987.